Alfredo Cunha a cores
Entrevista: ALOÍSIO NOGUEIRA Fotografia: MÁRIO SANTOS
Nasceu em Celorico da Beira e já correu o mundo de câmara na mão. Com 20 anos, em 25 de Abril de 74, cruzou-se com Salgueiro Maia e seguiu-o. Já viu trocar um BMW por um maço de tabaco e foi mais de 10 vezes à Índia sem nunca lá fazer uma fotografia a cores. Considera-se um tipo com sorte: com 18 anos foi fotografar um catálogo da Triumph e mais de 50 anos depois veio descobrir a Maia, onde diz que estão sempre coisas a acontecer. Como costuma dizer, nada surge por acaso mas avisa que nas Maldivas não se passa nada. Tudo começou naquele click aos 7 anos, no boémio Café da Beira, onde se ia ver TV…
Aloísio Nogueira: A minha primeira dúvida, Alfredo: é fotógrafo ou fotojornalista?
Alfredo Cunha: Eu cá sou fotógrafo.
Alfredo Cunha tem um percurso profissional que dispensa apresentações. Nasceu em Celorico da Beira e no dia 25 de Abril de 1974 teve um encontro com eternidade. Como chegou a esse encontro?
Nasci, de facto, em Celorico da Beira. Vivi em Celorico da Beira, vivi no Brasil, em Mangualde, em Lisboa… vivi em muito sítios. Atualmente vivo em Vila Verde. Eu costumo dizer que nasci duas vezes: nasci no dia em que nasci e nasci no dia 25 de abril de 1974, com 20 anos. Foi quando me cruzei com Salgueiro Maia. Tive a sorte e o bom senso de perceber que aquele era o tipo que me interessava seguir e isso levou-me a onde estamos hoje. Levou-me a fazer as fotografias do 25 de Abril que forçosamente deram origem, depois, às fotos da descolonização e do PREC e a muitas outras reportagens.
O 25 de abril, para mim, é uma coisa fantástica, mas também é um peso, pois eu tenho 50 anos de carreira e fiz muita, muita coisa. Aliás eu costumo dizer que sou um fotógrafo do meu tempo e fotografei o meu tempo. Essencialmente posso resumir a minha carreira assim: limitei-me a fotografar o meu tempo e a estar presente nas alturas que eram fundamentais. Não as escolhi. Foram elas que me surgiram à frente e eu limitei-me a fotografá-las. Depois, quando eu digo que o 25 de abril é uma carga para mim, é uma carga porque à medida que o tempo passa, eu sinto que é preciso manter viva a memória do 25 de abril e deixar esse legado para as novas gerações.
Fotografou também a descolonização.
Os chamados “retornados” que regressaram de África “como uma mão à frente e outra a atrás” não estavam felizes e com razão. Perderam tudo por uma política colonial desastrosa e não pela democracia. Apesar de tudo, a democracia trouxe-os para cá, onde eles introduziram um factor de desenvolvimento muito grande. Portugal, depois que vieram os refugiados das ex-colónias passou a ser outro país. Fez-se uma ponte aérea que em menos de 3 meses transportou mais de meio milhão de pessoas. Eu fui durante 15 dias na ponte aérea Lisboa – Luanda e vi coisas completamente avassaladoras, de perda total. Gente que no dia anterior era muito rica…vi trocar um BMW por uma maço de cigarros, no aeroporto de Luanda.
O Alfredo tirou a fotografia icónica do 25 de abril, de Salgueiro Maia, e tem uma carreira longa de 50 anos. Isso por vezes pode ser uma maldição. Alguma vez se sentiu “perseguido” pela fotografia do Salgueiro Maia?
Não. A minha formação fotográfica é muito sólida, do ponto de vista técnico. O meu pai, com quem comecei, era muito sólido. Quando eu fui para os jornais foi-me relativamente fácil porque o acto de fotografar, para mim, era natural. A consciência política e o contacto com outros fotógrafos importantes da época abriram-me horizontes. Depois eu sempre gostei de símbolos. Trabalhei em publicidade e uma das coisas que gosto é de ícones e símbolos e eu acho que as minhas fotografias são uma sucessão de ícones. Fotografei Salgueiro Maia, que é um ícone. Na descolonização tenho outro ícone que é o monumento às descobertas com os caixotes dos retornados à volta.
Porquê o preto e branco como opção artística?
É uma forma de ver e de estar na fotografia. Eu considero que o preto e branco depura o ruído cromático. O ruído cromático data as fotografias, muitas vezes de forma incorreta. O preto e branco remete-nos para uma visão mais limpa. Depois, há outra coisa: é a minha linguagem. Fui à Índia umas 10 vezes e fotografei sempre a preto e branco. Nunca ninguém se queixou pela falta de cor.
Lembra-se da sua primeira fotografia?
Lembro-me muito bem! Eu tinha 7 anos! Foi no Café da Beira, onde as famílias iam ver TV. Num domingo à tarde, o meu pai, vindo de fotografar um casamento, chegou ao café onde já estávamos (eu a minha mãe e os meus irmãos), e de repente, virou-se para mim e disse; “queres tirar uma fotografia?”. Eu, que andava doido para fazer isso, peguei na Rolleiflex e fotografei a minha mãe e os meus irmãos. Lembro-me perfeitamente: estava a dar desenhos animados na TV.
A partir daí começou a ajudar o seu pai…
Eu odiava fotografia, porque para mim fotografia significava trabalho; significava não ter domingos à tarde, significava ficar fechado horas no laboratório…
E como é que se deu a mudança, o click?
Eu tenho muitos defeitos, mas também tenho algumas virtudes. Uma delas é perceber muito bem o que me rodeia. Nos casamentos uma das minhas funções era carregar as máquinas com filme, para o meu pai. Ficava ali, junto a ele, com as câmaras na mão, à espera que o meu pai me desse o sinal para trocar de máquina. Então percebi que as máquinas fotográficas era um iman de “miúdas giras”, que vinham junto a mim pedir “Ó senhor fotógrafo, não me tira uma fotografia?” A máquina fotográfica era um passaporte… Era o lado utilitário da fotografia. Depois veio a fase da militância: comecei a fotografar os bairros sociais, o trabalho infantil…depois comecei a perceber que as pessoas gostavam das minhas fotografias, comecei a apurar até que cheguei à conclusão que tinha que ser fotógrafo. Comecei a trabalhar com o meu pai – eu queria ser fotógrafo, mas não como o meu pai – depois passei para a publicidade e como seu um tipo com sorte uma vez, com 18 anos, fui fotografar para um catálogo da Triumph, cheio de top models… depois deixei-me “desse caminho de perdição” até que em 1972 fui para o fotojornalismo, trabalhar com a mãe do primeiro ministro António Costa, Maria Antónia Palla.
Já fotografou em mais de 100 países e agora veio fotografar a Maia, durante duas semanas. Como surge a sua ligação à Maia?
Tenho uma carreira longa, já trabalhei em muitos lados e há muito pouca coisa na fotografia que eu já não tenha feito. Depois, como noutros momentos da minha vida, tive sorte, que foi ter sido convidado para expor na Maia em 2016. Foi-me oferecida a possibilidade de fazer a maior exposição que alguma vez tinha feito. A exposição “O tempo depois do tempo” marca uma viragem na minha carreira. A exposição foi feita aqui na Maia e depois vai para a Cordoaria Nacional, apoiada pela Câmara da Maia. Muita gente ainda hoje pensa que foi a grande exposição da Cordoaria Nacional, o que não era, pois era da Maia. É uma exposição que tem 600 fotografias. Essa exposição na Maia teve uma audiência brutal, milhares de pessoas. Foi muito marcante. Tanto que a Câmara de Lisboa quis levá-la para a Cordoaria, onde foi vista por 16 mil pessoas em 3 meses, a seguir à exposição de Sebastião Salgado. Eu terminei a minha carreira de fotojornalista já há bastante tempo, em 2013. Entre 2013 e 2016 publiquei um livro e andava à procura do que ia fazer a seguir. A exposição da Maia abriu-me uma perspetiva artística e editorial. É a partir dessa exposição que eu começo a editar consecutivamente. Desde 2016, todos os anos editei um livro.
O momento que espoletou essa nova fase da sua carreira foi, então, a grande exposição aqui na Maia, em 2016?
Sim, “O tempo depois do tempo” é o momento que dispara essa nova fase da minha carreira. Eu não acredito em bruxas mas tudo tem um tempo e tudo tem um simbolismo. Mesmo o “Livro da Maia” também nasceu de um convite da Sofia Barreiros para fazer uma projeção no Parque, mas que se transformou em livro – “O livro da Maia”, que ganhou vida própria. Tal como a Maia, que é constituída por diferentes e diversos territórios que se entrelaçam uns nos outros, o urbano e o rural, que não se consegue saber onde cada um começa e acaba. Não adiantou nada estabelecermos inicialmente percursos ou roteiros, porque a Maia acaba por se nos impor e chamar por outros caminhos.
Apesar dessa diversidade, existe uma harmonia na diferença?
Para mim a questão da harmonia não se põe. o que eu acho é que o que tem que acontecer acontece. Este livro tinha que acontecer. Só se eu fosse cretino… as coisas estavam à minha frente, era só fotografá-las. Neste território há milhares de coisas a acontecerem ao mesmo tempo. É que há territórios que não é assim, em que não se passa nada. Isso bloqueia um fotógrafo. Já fui às Maldivas e não tirei uma fotografia. Lá não se passa nada, não acontece nada. Aqui estão sempre coisas a acontecer. Há uma energia vital e visível…e audível. O território é hoje das coisas que mais me interessa. Tenho na minha cabeça o Alentejo, porque percebi que não conheço o Alentejo. Vai ser o meu próximo grande projeto.
Que impressões leva da Maia?
A Maia é um território onde existe muita qualidade de vida. Foi o que me pareceu. Os parâmetros de qualidade de vida aqui estão um bocadinho mais acima. E existe mobilidade: está perto de tudo, mas, paradoxalmente, se o quisermos, também tem espaços para se estar longe de tudo, tranquilos. A Maia tem uma centralidade própria muito interessante. Houve um sítio que me impressionou muito, que é o lugar onde vai ser o Parque Milénio. Tem potencialidade para vir a ser um um sítio absolutamente extraordinário. Assim não o estraguem.
Alfredo Cunha é uma das maiores referências do fotojornalismo português. Nasceu em 1953, em Celorico da Beira, e começou a trabalhar como fotógrafo comercial e publicista nos inícios dos anos 70. Colaborou para os jornais Notícias da Amadora, O Século, O Século Ilustrado (1972), Público (entre 1989 e 1997), Jornal de Notícias (2003), revista Focus (2000) e ainda para a agência LUSA (1987) e RTP2 (no programa Por Outro Lado, com Ana Sousa Dias, em 2002). Publicou Raízes da Nossa Força (1973, com Helena Neves), Vidas Alheias (1975), Disparos (1976), Naquele Tempo (1995), O Melhor Café, Porto de Mar (1997, com textos de Rita Siza, Mário Soares e Agustina Bessa-Luís) ou, mais recentemente, Cuidado com as Crianças (2013), Cortina dos Dias (2012) e Os Rapazes dos Tanques (2014). Em 1985 é designado como fotógrafo oficial do então Presidente da República Mário Soares. Registou com a sua objetiva, numa idade jovem mas já madura, acontecimentos fundamentais da história contemporânea portuguesa, como a Revolução do 25 de Abril, o processo de descolonização ou as guerras civis em África (sobretudo Moçambique).