Mestre Burmester

Texto: VICTOR DIAS | Fotografia: MÁRIO SANTOS

Define-se a si próprio como uma espécie de museu ambulante e quando o Porto joga até chama nomes ao árbitro. Se para os vizinhos de Nogueira é o senhor Pedro, o resto do mundo conhece-o como Pedro Burmester. Aquele que é um dos mais conceituados pianistas portugueses, de 57 anos, surge aqui sem filtros numa conversa de dois amigos.

Que memórias tens da Maia de quando para aqui vieste?

Quando viemos para a Maia em 74, tinha eu 10 anos, estranhámos todos um pouco; o meu pai era do Porto, a minha mãe era do Porto, eu nasci no Porto. A minha mãe fez muita força. Ela dizia que “a Maia era mais tranquila…a Maia, vão ver, é uma cidade com futuro …”. Ela pensava nomeadamente em mim, que nessa altura já estava muito focado no estudo do piano. Segundo a minha mãe, seria bom viver num sítio mais sossegado e com menos distrações. E obtido o consenso familiar, um pouco antes do 25 de abril de 74, lá viemos para a Quinta da Francesa, ali pegado aos Cónegos.

Num certo sentido, a tua mãe foi uma visionária ao afirmar que a Maia ia ser grande?

Na verdade, a Maia já era grande em área, mas não era nada do que é hoje. Aqui no centro havia a velhinha Câmara, ali em frente o Turista, onde eu jogava flippers e aqui onde está a Torre Lidador era o Maia Bar, onde eu jogava bilhar com os meus irmãos. Vi a Maia desenvolver-se nestes 47 anos de uma maneira muito harmoniosa. No contexto do Grande Porto, a Maia é, de facto, a cidade mais equilibrada.

Hoje já não vives na cidade. Como é viver em Nogueira, encontras aquilo que a tua mãe valorizou quando trouxe a família para a Maia em 74?

Sem dúvida! Acho que não me vejo a viver noutro lugar senão em Nogueira. Eu hoje era incapaz de viver no meio urbano. Fui para Nogueira, talvez, em 93/94, e não trocava o que ali tenho por nada. É igual ao que era quando eu mudei para lá; gente muito boa à minha volta, calma, tranquilidade e boa vizinhança.

Sendo tu um artista de nível internacional, sentes que as pessoas te adotaram?

Sim, evidentemente que ali sabem que eu sou o pianista, mas sou, essencialmente, o Pedro, o Senhor Pedro, consoante as circunstâncias, e sinto-me uma pessoa daquele lugar. Mas as pessoas também me tratam como alguém que pertence àquele lugar e não como uma figura pública

E a tua entrega à comunidade tem tido contornos recentes no lugar onde vives hoje?

Em Nogueira, sim, fiz um recital na Junta de Freguesia, para apoiar os concertos organizados por uma associação cultural local. Mas também estou, ainda que numa fase preliminar, envolvido num projeto para a criação de uma Universidade Sénior, igualmente em Nogueira, que vai ter uma oferta na área da Música.

Entendes que isso é uma questão de educação para a cidadania?

Sem dúvida. Num mundo em que vivemos, cada vez mais acelerado, é evidente que as pessoas estão muito focadas no seu umbigo. Penso até que a pandemia veio agravar essa realidade e sublinhar essa dificuldade de pensar e olhar para quem está à nossa volta, para quem partilha connosco os mesmos lugares e os mesmos rostos do dia-a-dia. Esta coisa de não podermos estar muito juntos, de termos de usar máscara e de evitarmos a aproximação social está a tornar mais difícil sairmos de nós, do nosso umbigo e da nossa pequena bolha. E isso está a dificultar a consciência da nossa obrigação cívica, de pensar e agir em prol dos outros e com isso dar sentido à nossa vida em comunidade.

Pedro, enquanto músico, que papel podes desempenhar no reforço da coesão social das comunidades onde tocas?

Acho que de todas as artes, a música é aquela que é mais abrangente e é aquela onde se pode juntar duas pessoas, de duas latitudes completamente distintas, e que não se conhecem, nem falam na mesma língua, mas que se podem entender perfeitamente.

E a tua música?

A minha música… queres dizer, aquela que eu faço. A música que eu toco é mais uma música de museu. Por vezes, digo que eu sou parecido com um tipo que anda com um museu às costas, porque se queremos ver uma pintura do Rembrandt ou se queremos ver a Guernica, de Picasso, temos que ir a Madrid. Ando a mostrar as sonatas de Beethoven, Mozart, Chopin, ou o que seja, ao mundo. É uma espécie de um museu ambulante e isto porque, a maior parte do repertório que eu toco, tem esse caráter museológico. 

O que há de genial ou misterioso que faz com que uma sonata de Beethoven continue a tocar o coração das pessoas hoje, provocando a mesma comoção e paixão?

Pois é verdade! Há obras intemporais!

Tu continuas a ouvir, a ver uma peça de Shakespeare, e o Shakespeare fala das coisas essenciais do ser humano e das relações entre as pessoas, não é?!

E por mais que seja num contexto particular, histórico, na verdade daquilo que ele verdadeiramente fala é dos sentimentos mais comuns a todo o ser humano, e a música de Beethoven é um bom exemplo do mesmo. Beethoven era um compositor que nos falava essencialmente do Homem, e das suas múltiplas facetas, sobretudo do lado nobre do ser humano.

Numa entrevista que fiz a Sequeira Costa, ele dizia-me que aos 80 anos já não conseguia tocar as mesmas obras que tocava aos 20. Também pensas que os artistas vão fazendo esse caminho?

Sim, faz parte da nossa condição, vamos perdendo destreza. Noutro dia, estava com um aluno a falar dessa questão, mas mais na perspetiva de que o fazemos porque vamos adquirindo sabedoria.

Sabedoria e experiência?

Sem dúvida, mais a experiência, tens razão. Vamos ouvindo, em cada nota, mais coisas. E à medida que vamos desfrutando da experiência que ganhamos, também precisamos de mais tempo para dar à nossa interpretação e ao que vamos descobrindo e extraindo de uma mesma peça que já tocamos imensas vezes.

É óbvio que eu, aos 20 anos, tenho uma leitura de uma certa forma, aos 40 tenho outra e aos 80 tenho necessariamente outra.

Há vários exemplos de épocas em que os mecenas, públicos e privados, incrementavam a criação de obras de valor artístico. Essa tradição está perdida?

Exatamente! Isso é uma grande lacuna! O património que temos, é porque alguém o imaginou, concebeu e o construiu. É preciso retomar essa tradição de criar e acumular património cultural e artístico e de o mostrar ao público.

É preciso evitar a confusão entre o que é cultura e o que é entretenimento. Entretenimento é um negócio como outro qualquer e aí, a meu ver, o Estado não deve entrar, deve deixar esse negócio para os privados.

O Estado deve estimular a criação de obras que enriqueçam o nosso património cultural, investindo na encomenda de obras de reconhecido valor estético, nas artes plásticas, na música, na literatura, no cinema, na arquitetura. É realmente preciso retomar a tradição de encomendar obras, ou dar condições para que se crie novo património.

E o memorável concerto que deste no Festival de Música da Maia, com Mário Laginha, em que no final o público nunca mais vos deixava abandonar o palco?

Sim tenho de facto uma ideia de ter tocado umas quantas vezes em encore Scaramuche – Brasileira, de Darius Millaud.

Bom, mas com o Mário já é uma relação de muitos, muitíssimos anos. A primeira vez que tocámos juntos foi no Convento dos Capuchos, creio que em 1987. É sempre um diálogo muito interessante, pois embora ambos tenhamos o mesmo amor pela música, crescemos com músicas diferentes. Mas sempre que nos reencontramos em palco, há sempre novidade, há sempre uma frescura nesse diálogo, que passa para o público a nossa empatia e proximidade.

Passar esse clima para o público em concerto funciona?

É curioso, porque no princípio não sentia as coisas assim, não gostava especialmente de me expor e, às vezes, sentia o público como uma invasão do meu espaço vital.

Mas depois passei a ver a coisa de outra forma. E isso aconteceu quando estive ligado ao projeto da Casa da Música e me sentei muitas vezes do outro lado, do lado do público. 

Essa experiência foi importante porque me despertou para a partilha e, depois, quando voltei inteiramente ao palco, passei a partilhar o momento com o público. E era esse entendimento que me estava a faltar, a partilha.

Hoje quando subo ao palco, é para partilhar com o público alguma coisa, aquilo que eu sei, o melhor que sei, que outro escreveu, mas que eu sou o transmissor. Isto é uma oferta, uma partilha – peguem e gozem esta música como quiserem -, e isso é uma sensação muito boa para um artista.

A pandemia fechou-nos em casa. Que reflexões te trouxe?

Será que poderemos continuar a viver e a consumir assim, como se não houvesse amanhã? Vamos continuar com esta lógica de crescimento para sempre? Vamos continuar com esta tendência de que os ricos ficam mais ricos e os pobres cada vez mais pobres?

Esta é uma boa oportunidade para que cada um de nós se questione senão pode fazer diferente, fazer melhor e contribuir para a felicidade do outro e da sua comunidade. Estou convencido que na cabeça das pessoas algo vai mudar para melhor, assim como na organização da sociedade também irá haver melhorias. Confio que vamos sair melhor da pandemia.

Pedro, tu sempre foste muito interventivo, sempre tiveste um pensamento político estruturado. Como é que olhas para o país neste momento?

Sim Victor, tu conheces-me bem. Como também sabes, não há país que eu ame tanto como o meu. E vejo o meu país com um inacreditável potencial a todos os níveis, embora pareça que termos sempre com esta sensação de que ficamos aquém do que poderíamos ser. Há quem pense que deveríamos ser mais críticos, mais exigentes e responsabilizar pelo que não acontece ou se faz mal. Ao mesmo tempo somos naturalmente condescendentes, que apesar do seu lado negativo, é magnífico. Se queres que te diga, penso que devemos continuar a ser como somos, mas com maior e melhor distribuição da riqueza. E aí há ainda muito trabalho a fazer.

E qual é o papel da Educação nesse trabalho que ainda está muito por fazer?

É fulcral, como se tem visto. Aliás, o país também evoluiu muito, graças e devido precisamente à evolução da Educação. Mas, sobre a Educação, eu tenho muitas teorias e muito poucas certezas; agora que a Escola anda atrás dos tempos, anda! Isso parece-nos a todos.

Penso que a escola tem que mudar. Mas ninguém sabe muito bem como se pode realizar essa mudança de paradigma. Aquilo que ela atualmente instiga de competição, de notas, de avaliação, de ser melhor que o outro, já era… precisamos que a escola seja mais um sítio de comunhão de ideias, de partilha de coisas, de… de ajuda mútua… e, depois, há três ou quatro saberes que são essenciais, como a Língua, como a Matemática, a Música, a Filosofia e a Cidadania, mas também o corpo. E aprender o corpo, seja na Dança, seja no Desporto, é imprescindível. Eu ensinava estas coisas na escola, porque estas é que são pilares da formação de um ser humano.

E então essa tua paixão pelo Futebol Clube do Porto?

O futebol tem para mim um lado catártico e bom, pois é lá onde fujo à racionalidade, aquelas coisas que eu critico nos outros, por exemplo, quando têm preconceitos.

Não me digas que também chamas nomes aos árbitros?

Chamo! (Risos) Chamo nomes aos árbitros…ou seja, aquilo tudo que eu acho que não se deve fazer no convívio social normal do dia a dia, no futebol, é perdoável, dentro dos seus limites, é claro.

Os teus filhos vivem contigo em Nogueira, aqui na Maia. O que gostavas que se realizasse aqui na comunidade para melhorar o futuro deles?

Os meus filhos vivem aqui, porque é aqui que vivo com a minha família, naquele lugar que não troco por nada, ali em Nogueira. E sinto que a Maia tem andado muito bem; os passos que tem dado, parecem-me ser os certos, com calma. Não se fazem as coisas apenas para inglês ver, pelo contrário, o que foi feito foi para ser utilizado e bem utilizado. Se constrói um pavilhão gimnodesportivo é para aparecerem atletas de alta competição e campeões a nível mundial. A Maia faz as coisas tranquilamente e bem feitas.

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